quinta-feira, 13 de abril de 2017

MESTRE GICHIN FUNAKOSHI - A SUA HISTÓRIA DE VIDA


Gichin Funakoshi foi o homem certo que, no lugar certo e na época certa, deu ao Karate de Okinawa, o impulso de que este precisava para uma expansão que não conheceria mais fronteiras.
Precursor da chegada de outros especialistas okinawenses, ao Japão, o chamado “ Pai do Karate moderno” trabalhou movido por uma energia feroz a fim de desenvolver a arte do seu solo natal em terras nipónicas e fazê-la aceitar pelos orgulhosos japoneses.
Embora de porte físico pequeno (1,67m de altura e 65 kg de peso), Funakoshi soube impor-se por uma energia invulgar, força mental e coragem ilimitada, aspectos que aliara a uma natural benevolência, distinção de maneiras e ímpar gentileza no trato com todos. Para muitos dos seus contemporâneos, Funakoshi era “mais que humano”, um tatsujin (indivíduo fora do comum).
Quando surgiu, pela primeira vez, aos olhos do público japonês, com a sua habitual humildade, quase como se pedisse desculpa por lá estar, na grande festa dos desportos, organizada em Tóquio em Maio de 1922, cumprindo a demonstração de karate incluída à última da hora num programa de disciplinas ginásticas.
Funakoshi era um homem que passava dos 50 anos e não correspondia fisicamente, ao mito “budoka terrível” que o Japão procurava fazer sobreviver, numa época em que a nação se atirava a uma frenética ocidentalização iniciada em 1868 com a Era Meiji. O Karate surgia de maneira diferente das outras artes marciais conhecidas no Japão (como Jiu-Jitsu e o Judo também apresentados nessa festa desportiva). Educador nato e psicólogo, Funakoshi soube como seduzir o público Japonês: não demonstrou apenas Katas e formas de base; foi mais além, entusiasmando os assistentes e colocando a eficácia em estreita relação com as técnicas cientificamente demonstradas pela ação e pelas explicações claras e lógicas, numa linguagem que convinha ao Japão ansioso por modernidade, ouvir.
Funakoshi soube aplicar ao seu ensino uma metodologia “escolar”, uma progressão perfeitamente escalonada, como aprazia ao espírito lógico dos Japoneses, que valeu ao seu método, o Shotokan, o sucesso e o dinamismo que se conhece.
O desenvolvimento “dessa nova arte marcial” iria produzir-se em favor da ascensão da classe militar japonesa, o que, de certa forma, alteraria a mensagem profundamente humana que Funakoshi pretendia expandir através do seu Karate-Do. O Mestre salientaria este facto, repetidas vezes, nos seus escritos pessoais.
Jigoro Kano, o criador do Judo, a partir de técnicas esparsas do Jiu-Jitsu, havia seguido o mesmo caminho de pesquisas e explicações científicas, de que resultou a simpatia entre os dois mestres e uma amizade que duraria até à morte de Kano.
Foi, a pedido expresso de Jigoro Kano que Funakoshi aceitou ficar algum tempo mais no Japão, ensinando a sua arte: pensara ficar uma semana, não poderia supor que nunca mais reveria as areias de Okinawa, onde deixara a mulher, três filhos e uma filha.

Anos suceder-se-iam a anos e o desenvolvimento do Karate exigiria cada vez mais de si, segurando-o definitivamente no seu exílio voluntário, até que, numa manhã de Maio de 1922 começaria para Funakoshi, aos 53 anos, uma nova vida, sem que ele desse conta disso, na altura.

Um dos seus primeiros alunos, Meishojuku, era neto de Takomori Saigo, célebre herói samurai que se tinha deixado matar havia 50 anos, para defender o espírito tradicionalista do velho Japão.

Muitos aspetos da personalidade de Funakoshi passaram a ser conhecidos através de relatos daqueles que partilhavam a sua vida quotidiana. É o caso de Genshin Hironishi, segundo o qual, o seu mestre parecia bastante excêntrico, já que após a Segunda Guerra Mundial, continuava a seguir hábitos de uma época anterior à Primeira Guerra Mundial.

O velho mestre recusava-se terminantemente, por exemplo, a frequentar uma cozinha ou a pronunciar certas palavras japonesas modernas, criadas para denominar objetos que não existiam na época da sua juventude e sem os quais passava muito bem. A primeira coisa que Funakoshi fazia de manhã era a sua toillete, de uma hora, durante a qual escovava longamente os cabelos. Depois voltava-se em direcção ao Palácio Imperial inclinando-se com respeito, antes de fazer o mesmo na direção de Okinawa

Só depois desses rituais imutáveis é que tomava o chá da manhã. Até ao dia da sua morte, Funakoshi ministrou mais que um ensino puramente técnico, desejou passar aos discípulos um estado de espírito, uma regra de existência, uma filosofia de vida. Nos últimos anos, deu tanta ênfase a esse segundo aspeto do Karate, o moral, que levou certas pessoas a tomarem-no por um “velho gentil, mas ineficiente”, o que corresponde a ingratidão, incompreensão ou às duas coisas.
Filho único de uma família modesta, chegou a alterar a sua data de nascimento para 1870, a fim de apresentar a idade exigida para prestar exame na Escola de Medicina de Tóquio, na qual ficou aprovado. Entretanto, não entrou para o curso, devido a uma nova lei que proibia aos homens o porte de cabelos amarrados em coque sobre a cabeça (o “chon mage, símbolo da virilidade e da maturidade, em Okinawa). De espírito tradicionalista, a família de Funakoshi recusava-se a aceitar essa imposição.
Pequenos factos, grandes efeitos: se tivesse ido para Tóquio na ocasião, não teria conhecido o Okinawa-Te e o Karate teria tido outra sorte.
Aos 15 anos, o jovem Funakoshi descobrira o que se iria tornar a grande paixão da sua vida. Um amigo seu, na escola comum, era filho de Yasutsune Azato, um dos maiores especialistas de Okinawa-Te e de uma das famílias mais respeitadas em toda a ilha.
Numa época em que a prática da arte marcial era proibida em toda a ilha, pelos japoneses, Funakoshi treinava em segredo, à noite, sem fazer alarde do que lhe ensinavam. Era obrigado a fazer e repetir, mês após mês, o mesmo kata, “a ponto de sentir exasperação e humilhação”, como escreveria nas suas memórias, estando sujeito à expressa proibição de passar a um novo kata sem autorização do seu mestre. Esse ambiente rígido iria forjar o seu corpo de natureza frágil, e fortaleceria a sua vontade, já obstinada.
Os anos sucediam-se, assim como, os treinos na casa do mestre Azato. Invariavelmente, noite após noite, o jovem aluno percorria o mesmo caminho, estendendo diante de si a pequena lanterna, nos trilhos sem lua. Mas era preciso pensar também no futuro, em 1888, Funakoshi conseguia passar no exame de auxiliar de mestre de escola primária.
Para desespero dos pais, submeteu-se ao corte de cabelos, mas continuou a praticar a sua arte marcial.
Gichin Funakoshi falava sempre com muita emoção dos tempos da sua juventude e do mestre Azato, do qual fora, por muitos anos, segundo a sua autobiografia, o único discípulo.
O treino era severo e o mestre avaro de comentários, e, ainda menos de elogios aos progressos conquistados, tudo o que se ouvia era “mais um pouco” e o melhor cumprimento limitava-se à palavra “bom”. Somente aos primeiros clarões da aurora é que Azato abria um pouco a alma e falava da essência da arte. Decorria ainda a época em que ninguém via interesse em transmitir conhecimentos por escrito; época em que Okinawa-Te, oficialmente proibido, não deixava antever nenhuma possibilidade de carreira a instrutores profissionais, época em que cada história contada tomava rapidamente as dimensões de lenda.
Funakoshi insiste nas suas memórias: nunca ter presenciado, no decorrer da sua vida, façanhas que fossem para além das possibilidades humanas e insiste também na ideia de que todo o homem tem os seus limites.
Nessa época foi Funakoshi apresentado a Yasatsune Itosu, grande amigo de Azato, sabendo aproveitar a oportunidade, usufruindo da troca de ideias dos dois mestres sobre os aspectos profundos do Okinawa-Te.
Promovido na sua profissão, Funakoshi foi transferido para uma escola pública de Naha. Por volta do fim do século XIX, sempre fiel aos seus primeiros mestres, aprimorou a sua arte , ampliou os seus conhecimentos técnicos, trabalhando com Kyuna (que era capaz de descascar um tronco de árvore com as mãos nuas), Toona, Nigaki e Matsumura.

O essencial da sua bagagem técnica já estava adquirido: formara-se do shuri-te (Shorin) dos mestres Azato e Itosu, expressa pelos katas Heian, Bassai, Kanku, Enpi, Gankaku (termos “ajaponesados” que o próprio Funakoshi dera às formas do “Dai Nipon Karate Do” para não recordar aos japoneses a origem chinesa desses katas.


Grupo com alguns dos seus alunos
Gichin Funakoshi (2º á esq. em baixo), seu filho Yoshitaka Funakoshi (3º á esq. em baixo), M.Nakayama (1º á dir. em baixo)


Funakoshi também levaria ao Japão certos katas tomados do Naha-Te (Shorei), como Tekki, Jute, Hangetsu, Jion e mais uma quinzena de formas antigas. Nos anos que antecederam a guerra, foram criados os três Katas Taikyoku (discutível ,se formas simplificadas para iniciados, ou se formas de pura pesquisa pelo filho Yoshitaka Funakoshi), assim como o Ten no kata (etapa de treino para Kumite, então desconhecido dos puristas).
Quando Funakoshi chega aos 30 anos de idade, a arte das mãos vazias tinha a sua primeira demonstração pública em Okinawa, em 1906, já era ensinada nas escolas como prática desportiva, consequência do trabalho do Mestre Itosu. Por conseguinte, muitos japoneses (considerados “estrangeiros” pelos Okinawanos) puderam ter alguma noção dessa técnica até então oculta.
Foi, devido ao relatório que Shintaro Ogawa, comissário do governo do distrito de Kagoshima, dirigiu ao Ministério da Educação, que o treino do Karate passou a ser oficialmente, autorizado nas escolas.
Alguns anos mais tarde, o capitão da Marinha Imperial Japonesa, Rokuro Yashiro assistia a uma demonstração de katas que o impressionou muito, a ponto de dar aos seus homens ordem de treinar Karate

. Em 1912, a primeira frota imperial, sob o comando do Almirante Dewa, acostava na baía de Chojo-o o que permitiu a uma dúzia de oficiais selecionados estudarem a “Arte da Mão Vazia” por um curto período de tempo. As primeiras noções desse Karate entraram no Japão com o regresso desses oficiais.

A brecha iria abrir-se ainda mais, graças a uma primeira demonstração feita em Kyoto, por Funakoshi, em 1916. Segundo fontes de estudo, todavia, Tsuyoshi Chitose teria dado uma demonstração ainda antes. No dia 6 de Março de 1921, o príncipe herdeiro Hirohito, em viagem para a Europa, faz uma escala em Okinawa e impressiona-se vivamente com a demonstração de Karate feita diante dele. A partir dessa época, marcada pelo renascimento do imperialismo no Japão e do desenvolvimento militarista, os dirigentes japoneses passaram a ver no Karate Jitsu um excelente meio, entre outros, de fortalecer essa elite.

É no ano seguinte, que Funakoshi regressa, de uma segunda viagem ao Japão e desta vez para não mais deixar o país, prisioneiro do seu próprio êxito.

Já outros haviam também tentado mostrar a “Arte da Mão Vazia”, em terras distantes, como Norimichi Yabe, em 1920, nos Estados Unidos. Em Maio de 1922, Gichin Funakoshi, então presidente da Okinawa Shobu Kai, chegava a Tóquio.

Em Novembro, assinava o seu primeiro livro, “Ryukyu Kenpo Karate”, a primeira publicação sobre o assunto, na qual explicava o espírito da sua arte. As placas de impressão dessa obra foram destruídas pelo terramoto de 1923, o que deu lugar a nova edição, revista, a “Rentan Goshin Karate Jutsu”. Em 1935, surgiu a sua segunda obra, desta vez, um verdadeiro manual técnico, o “Karate Do Kyohan”.

A partir de então, a popularidade da modalidade crescia, a ponto de encobrir os seus próprios pioneiros. A escolha de Funakoshi pelos seus pares, para ir ao Japão, recaiu, é preciso insistir no facto de que queriam que o primeiro mestre a representar oficialmente Okinawa fosse, tanto embaixador e diplomata, quanto técnico na Arte.

Gichin Funakoshi era também mestre de poesia e caligrafia; ensinava profissionalmente a ler e escrever o idioma Japonês, estando bem a par dos costumes do País em relação às maneiras e ao comportamento social.

Há quem pretenda, como o mestre Soshin Nagamine, que Choki Motobu tenha acompanhado Funakoshi a Tóquio por ocasião da histórica demonstração. Na sua obra, “Okinawa Kenpo Karate Jutsu”, Motobu diz que fora ele a convidar Funakoshi para tomar o lugar de instrutor principal do Japão, visto não conhecer bem os costumes e a língua Japoneses. Seja como for, o certo é que Motobu ensinara Karate em Osaka, a partir de 1923.

O encontro entre Funakoshi e Jigoro Kano foi decisivo para a propagação do Karate. Kano convidara Funakoshi para fazer uma demonstração reservada, no Kodokan. Funakoshi demonstrou o Kata Kanku Dai (então chamado Kushanku) e o seu amigo Makoto Gima demonstrou o Naihanchi Shodan. Em 1924, Jigoro Kano, acompanhado de Nagaoka, davam uma demonstração de Judo em Okinawa. Assim, ambos os mestres, de Karate e Judo, continuaram a sentir uma mútua estima , conta-se que, até ao fim de sua vida (Kano morreu em 1938), Funakoshi inclinava-se todas as manhãs, em direção ao Kodokan em memória de Jigoro Kano.

Fez, ainda, inúmeras demonstrações com Makoto Gima, tornou-se o seu discípulo favorito.

Não houve, entretanto, uma “ponte de ouro” Okinawa-Japão. O início foi duro!

No seu primeiro ano no Japão, Funakoshi teve que se contentar com o dormitório dos alunos, em Suidobashi. Durante o dia, ocupava-se dos afazeres rotineiros e, à noite, ensinava os primeiros alunos. O seu primeiro discípulo japonês foi Tanaka Kuniki. O ensino era gratuito; Funakoshi ganhava a vida, dificilmente, graças aos seus conhecimentos de caligrafia.

O estilo Shotokan (criado por Funakoshi), baixo e poderoso, é hoje, muito popular em todo o Mundo.


Onze anos após a morte de Gichin Funakoshi (1868-1957), foi erigido um memorial, no Templo de Enkaku-ji em Kamakura no ano de 1968.
 
 

 

Em cima, o epitáfio do memorial a Gichin Funakoshi. Foi escrito por Asahina Sogen, sacerdote chefe do templo Enkaku-ji, e nele se lê: “Karate ni sente nashi” (Não há primeiro ataque em karate)
 

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