Muito se fala e se discute, principalmente no ocidente,
sobre a figura e o papel da gueixa na sociedade japonesa. Na prática,
poucos ocidentais, e mesmo japoneses, têm efetivamente contato com uma
gueixa. Em público, elas só aparecem em poucas ocasiões, como no Jidai
Matsuri (Festival das Eras), e na temporada de danças tradicionais
Kamogawa Odori (Danças do Rio Kamo) que ocorrem em outubro, em Kyoto.
Fora tais ocasiões, poucos turistas conseguem vê-las andando pelas ruas,
nas raras ocasiões em que saem para ter aulas de dança, shamisen
(cítara de três cordas tradicional) ou ikebana (arranjo floral), ou a
caminho de um restaurante para entreter algum empresário ansioso em
impressionar os seus convidados. Ser servido ou entretido por uma
gueixa, mesmo entre os japoneses, é privilégio de poucos.
O fascínio pelo assunto no ocidente começou através de
artigos de jornais e da arte, do teatro e da literatura a partir da
segunda metade do século XIX, quando o Japão passou a abrir os seus
portos às potências ocidentais, terminando um isolamento comercial e
cultural que durou mais de 200 anos. As gravuras ukiyo-e (retratos do
mundo flutante) tornaram-se bastante populares e apreciadas na Europa,
em especial por artistas plásticos franceses. Vendidas em folhas
avulsas ou até encadernadas na forma de um livro, tais gravuras
frequentemente retratavam gueixas, havendo até artistas que se
especializaram em desenhá-las, como Kiyonaga e Utamaro, formando um
“estilo” dentro do ukiyo-e, chamado de bijin-ga (desenho de mulher
bela). Relatos de viajantes e correspondentes publicados em jornais de
um Japão tão diferente e exótico eram lidos com grande curiosidade.
Em 1904, o compositor italiano Giacomo Puccini criou a
ópera “Madame Butterfly”. Inspirada num caso verídico, a ópera conta a
trágica história de uma gueixa, Cho-cho (“borboleta” em japonês), que se
apaixona por Pinkerton, oficial americano em missão no Japão.
Acreditando ser esposa de Pinkerton, ela tem um filho mestiço e passa a
sofrer o preconceito dos japoneses. Ele é chamado de volta aos Estados
Unidos, e acreditando nos democráticos valores com que o seu amado
descrevia o ocidente, Cho-cho aguarda o seu regresso ao Japão na
esperança de ir viver com ele e com o filho na América. Mas Pinkerton
volta casado com uma americana e deixa Cho-cho, que acaba por se matar.
Até hoje extremamente popular, “Madame Butterfly” não apenas tornou
Cho-cho a gueixa ficcional mais famosa do mundo, como também serviu de
inspiração para filmes e outra peça de sucesso 80 anos depois: o musical
“Miss Saigon”, de Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg.
A ficção e as diferenças culturais fizeram com que a
idéia que o ocidente tem das gueixas seja distorcida, pouco
correspondendo com a realidade. Muitos, principalmente os incultos,
acham que uma gueixa nada mais é do que uma exótica prostituta de luxo –
algo que choca os japoneses, que as consideram refinadas guardiãs das
artes tradicionais. Para os japoneses, achar ou tratar uma gueixa como
se ela fosse uma mera prostituta é uma atitude que revela não só falta
de critério, mas de cultura de quem assim age. Na sociedade japonesa, a
gueixa é objeto de admiração e respeito. Elas dão status aos lugares que
vão e às pessoas com quem se relacionam , um status que é mais ligado à
tradição que à moda.
Entender
o que é, ou o que faz uma gueixa ser uma gueixa, é difícil para os que
pouco conhecem o Japão, a história, a cultura e a sociedade do país. A
existência da gueixa só pode ser compreendida no contexto japonês, assim
como ela é produto do que o Japão foi e é.
O
surgimento da gueixa tem muito a ver com a maneira pela qual a
sociedade japonesa foi organizada durante o governo dos xóguns da
família Tokugawa, também conhecido como a Era Edo (1603 – 1867). No
século XVII, nas primeiras décadas do estabelecimento do xogunato,
crescentes medidas de controle da vida civil foram tomadas objetivando
não só estabilidade interna, mas a manutenção do clã Tokugawa no poder, o
que deu à sociedade como um todo uma forma feudal, rígida e
hierarquizada, de pouca mobilidade de uma classe a outra e fechada em si
mesma. Influências externas, como o cristianismo, eram vistas como
negativas e subversivas, de tal modo que em 1637 um édito do xogunato
ordenou a proibição do comércio e da vinda de navios europeus
(exceptuando os holandeses da Companhia das Índias, que eram tolerados
por não misturar religião ao comércio, e que ficavam isolados em uma
ilha perto de Nagasaki) e a expulsão dos estrangeiros, impondo um
isolamento do Japão que se estenderia por dois séculos.
O controle do governo sobre a sociedade civil atingiu em
especial as mulheres. Excetuando os papéis de mãe, esposa e dona de
casa, não havia uma profissão que uma mulher pudesse exercer, que não
fosse na condição de auxiliar do seu marido na agricultura, ou num
comércio dirigido pelo esposo – trabalhos que eram considerados
“obrigação” da mulher e que, por isso, não recebia uma remuneração
específica. A falta de opções de profissões para as mulheres foi
agravada em 1629, quando por lei o xógun tornou o teatro uma atividade
proibida às mulheres. Impedidas de praticar atividades de entretenimento
em público, os palcos foram rapidamente ocupados por homens
travestidos, para substituir a presença feminina em cena. Não tendo um
marido ou uma família que a sustentasse, restava à mulher apenas a
prostituição como meio de subsistência.
A palavra geisha significa literalmente “pessoa da arte,
artista”, e ela foi originalmente usada para designar comediantes e
músicos que se apresentavam em banquetes e festas particulares no século
XVII. Assim, as primeiras gueixas não foram mulheres, mas homens. Os
otoko-geisha (artistas masculinos) eram especializados em entreter
pequenas platéias em festas, dançando, cantando contando histórias e
piadas. Como os palcos estavam proibidos às mulheres, as festas privadas
tornaram-se os únicos lugares onde as mulheres podiam tocar música,
dançar e cantar, e assim surgiram as onna-geisha (artistas femininas).
Entretanto, aquela era uma época em que a atividade
artística e prostituição se confundiam. Donos de pousadas e de casas de
chá ofereciam as suas funcionárias, que de dia serviam ás mesas e
limpavam o estabelecimento, como prostitutas à noite, ao que se dava o
sutil nome de “serviço de travesseiro”. Nem sempre se tratava de
prostituição voluntária – patrões sem escrúpulos diziam às empregadas
“agrade o cliente ou é despedida”. Originalmente o teatro kabuki era
predominantemente feminino, porém muitas dançarinas de kabuki
prostituíam-se e escândalos de samurais envolvidos com elas na capital
foram a causa da proibição em 1629. Assim, a clientela dos banquetes não
esperava menos das mulheres artistas. Embora durante muito tempo a
atividade de gueixa confundiu-se com prostituição, a partir do século
XVIII medidas que oficializaram e regulamentaram a prostituição acabaram
distinguindo as prostitutas das gueixas.
Atualmente
ser uma gueixa é mais do que uma mera profissão. É um estilo de vida
que exige total e absoluta dedicação. É aceitar acima de tudo que será
uma vida de servidão, que eventualmente terá grandes recompensas. Como
tudo no Japão, ser gueixa é também um dom, um caminho a ser percorrido
pelo resto da vida. Karyukai, “o mundo da flor e do salgueiro”, é o nome
que se dá ao mundo das gueixas. Cada gueixa é como uma flor e um
salgueiro: bela em seu próprio modo de ser como uma flor; graciosa,
flexível mas forte como um salgueiro.
E assim vamos "conhecendo" uma cutura que nos muito especial. Obrigado!
ResponderEliminarObrigado. Abraço ao meu/minha ilustre desconhecido :)
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