Gichin
Funakoshi foi o homem certo que, no lugar certo e na época certa,
deu ao Karate de Okinawa, o impulso de que este precisava para uma
expansão que não conheceria mais fronteiras.
Precursor
da chegada de outros especialistas okinawenses, ao Japão, o chamado
“ Pai do Karate moderno” trabalhou movido por uma energia feroz a
fim de desenvolver a arte do seu solo natal em terras nipónicas e
fazê-la aceitar pelos orgulhosos japoneses.
Quando
surgiu, pela primeira vez, aos olhos do público japonês, com a sua
habitual humildade, quase como se pedisse desculpa por lá estar, na
grande festa dos desportos, organizada em Tóquio em Maio de 1922,
cumprindo a demonstração de karate incluída à última da hora num
programa de disciplinas ginásticas.
Funakoshi
era um homem que passava dos 50 anos e não correspondia fisicamente,
ao mito “budoka terrível” que o Japão procurava fazer
sobreviver, numa época em que a nação se atirava a uma frenética
ocidentalização iniciada em 1868 com a Era Meiji. O Karate surgia
de maneira diferente das outras artes marciais conhecidas no Japão
(como Jiu-Jitsu e o Judo também apresentados nessa festa
desportiva). Educador nato e psicólogo, Funakoshi soube como
seduzir o público Japonês: não demonstrou apenas Katas e formas de
base; foi mais além, entusiasmando os assistentes e colocando a
eficácia em estreita relação com as técnicas cientificamente
demonstradas pela ação e pelas explicações claras e lógicas,
numa linguagem que convinha ao Japão ansioso por modernidade, ouvir.
Funakoshi
soube aplicar ao seu ensino uma metodologia “escolar”, uma
progressão perfeitamente escalonada, como aprazia ao espírito
lógico dos Japoneses, que valeu ao seu método, o Shotokan, o
sucesso e o dinamismo que se conhece.
O
desenvolvimento “dessa nova arte marcial” iria produzir-se em
favor da ascensão da classe militar japonesa, o que, de certa forma,
alteraria a mensagem profundamente humana que Funakoshi pretendia
expandir através do seu Karate-Do. O Mestre salientaria este facto,
repetidas vezes, nos seus escritos pessoais.
Jigoro
Kano, o criador do Judo, a partir de técnicas esparsas do Jiu-Jitsu,
havia seguido o mesmo caminho de pesquisas e explicações
científicas, de que resultou a simpatia entre os dois mestres e uma
amizade que duraria até à morte de Kano.
Foi,
a pedido expresso de Jigoro Kano que Funakoshi aceitou ficar algum
tempo mais no Japão, ensinando a sua arte: pensara ficar uma semana,
não poderia supor que nunca mais reveria as areias de Okinawa, onde
deixara a mulher, três filhos e uma filha.
Anos
suceder-se-iam a anos e o desenvolvimento do Karate exigiria cada vez
mais de si, segurando-o definitivamente no seu exílio voluntário,
até que, numa manhã de Maio de 1922 começaria para Funakoshi, aos
53 anos, uma nova vida, sem que ele desse conta disso, na altura.
Um
dos seus primeiros alunos, Meishojuku, era neto de Takomori Saigo,
célebre herói samurai que se tinha deixado matar havia 50 anos,
para defender o espírito tradicionalista do velho Japão.
Muitos aspetos da personalidade de Funakoshi passaram a ser conhecidos
através de relatos daqueles que partilhavam a sua vida quotidiana. É
o caso de Genshin Hironishi, segundo o qual, o seu mestre parecia
bastante excêntrico, já que após a Segunda Guerra Mundial,
continuava a seguir hábitos de uma época anterior à Primeira
Guerra Mundial.
O
velho mestre recusava-se terminantemente, por exemplo, a frequentar
uma cozinha ou a pronunciar certas palavras japonesas modernas,
criadas para denominar objetos que não existiam na época da sua
juventude e sem os quais passava muito bem. A primeira coisa que
Funakoshi fazia de manhã era a sua toillete, de uma hora, durante a
qual escovava longamente os cabelos. Depois voltava-se em direcção
ao Palácio Imperial inclinando-se com respeito, antes de fazer o
mesmo na direção de Okinawa
Só
depois desses rituais imutáveis é que tomava o chá da manhã. Até
ao dia da sua morte, Funakoshi ministrou mais que um ensino
puramente técnico, desejou passar aos discípulos um estado de
espírito, uma regra de existência, uma filosofia de vida. Nos
últimos anos, deu tanta ênfase a esse segundo aspeto do Karate, o
moral, que levou certas pessoas a tomarem-no por um “velho gentil,
mas ineficiente”, o que corresponde a ingratidão, incompreensão
ou às duas coisas.
Filho
único de uma família modesta, chegou a alterar a sua data de
nascimento para 1870, a fim de apresentar a idade exigida para
prestar exame na Escola de Medicina de Tóquio, na qual ficou
aprovado. Entretanto, não entrou para o curso, devido a uma nova
lei que proibia aos homens o porte de cabelos amarrados em coque
sobre a cabeça (o “chon mage, símbolo da virilidade e da
maturidade, em Okinawa). De espírito tradicionalista, a família de
Funakoshi recusava-se a aceitar essa imposição.
Pequenos
factos, grandes efeitos: se tivesse ido para Tóquio na ocasião, não
teria conhecido o Okinawa-Te e o Karate teria tido outra sorte.
Aos
15 anos, o jovem Funakoshi descobrira o que se iria tornar a grande
paixão da sua vida. Um amigo seu, na escola comum, era filho de
Yasutsune Azato, um dos maiores especialistas de Okinawa-Te e de uma
das famílias mais respeitadas em toda a ilha.
Numa
época em que a prática da arte marcial era proibida em toda a ilha,
pelos japoneses, Funakoshi treinava em segredo, à noite, sem fazer
alarde do que lhe ensinavam. Era obrigado a fazer e repetir, mês
após mês, o mesmo kata, “a ponto de sentir exasperação e
humilhação”, como escreveria nas suas memórias, estando sujeito
à expressa proibição de passar a um novo kata sem autorização do
seu mestre. Esse ambiente rígido iria forjar o seu corpo de natureza
frágil, e fortaleceria a sua vontade, já obstinada.
Os
anos sucediam-se, assim como, os treinos na casa do mestre Azato.
Invariavelmente, noite após noite, o jovem aluno percorria o mesmo
caminho, estendendo diante de si a pequena lanterna, nos trilhos sem
lua. Mas era preciso pensar também no futuro, em 1888, Funakoshi
conseguia passar no exame
de auxiliar de mestre de
escola primária.
Para
desespero dos pais, submeteu-se ao corte de cabelos, mas continuou a
praticar a sua arte marcial.
Gichin
Funakoshi falava sempre com muita emoção dos tempos da sua
juventude e do mestre Azato, do qual fora, por muitos anos, segundo a
sua autobiografia, o único discípulo.
O
treino era severo e o mestre avaro de comentários, e, ainda menos de
elogios aos progressos conquistados, tudo o que se ouvia era “mais
um pouco” e o melhor cumprimento limitava-se à palavra “bom”.
Somente aos primeiros clarões da aurora é que Azato abria um pouco
a alma e falava da essência da arte. Decorria ainda a época em que
ninguém via interesse em transmitir conhecimentos por escrito; época
em que Okinawa-Te, oficialmente proibido, não deixava antever
nenhuma possibilidade de carreira a instrutores profissionais, época
em que cada história contada tomava rapidamente as dimensões de
lenda.
Funakoshi
insiste nas suas memórias: nunca ter presenciado, no decorrer da sua
vida, façanhas que fossem para além das possibilidades humanas e
insiste também na ideia de que todo o homem tem os seus limites.
Nessa
época foi Funakoshi apresentado a Yasatsune Itosu, grande amigo de
Azato, sabendo aproveitar a oportunidade, usufruindo da troca de
ideias dos dois mestres sobre os aspectos profundos do Okinawa-Te.
Promovido
na sua profissão, Funakoshi foi transferido para uma escola pública
de Naha. Por volta do fim do século XIX, sempre fiel aos seus
primeiros mestres, aprimorou a sua arte , ampliou os seus
conhecimentos técnicos, trabalhando com Kyuna (que era capaz de
descascar um tronco de árvore com as mãos nuas), Toona, Nigaki e
Matsumura.
O
essencial da sua bagagem técnica já estava adquirido: formara-se
do shuri-te
(Shorin) dos mestres Azato e Itosu, expressa pelos katas Heian,
Bassai, Kanku, Enpi, Gankaku (termos “ajaponesados” que o próprio
Funakoshi dera às formas do “Dai Nipon Karate Do” para não
recordar aos japoneses a origem chinesa desses katas.
Grupo
com alguns dos seus alunos
Gichin
Funakoshi (2º á esq. em baixo), seu filho Yoshitaka Funakoshi (3º
á esq. em baixo), M.Nakayama (1º á dir. em baixo)
Funakoshi
também levaria ao Japão certos katas tomados do Naha-Te (Shorei),
como Tekki, Jute, Hangetsu, Jion e mais uma quinzena de formas
antigas. Nos anos que antecederam a guerra, foram criados os três
Katas Taikyoku (discutível ,se formas simplificadas para iniciados,
ou se formas de pura pesquisa pelo filho Yoshitaka Funakoshi), assim
como o Ten no kata (etapa de treino para Kumite, então desconhecido
dos puristas).
Quando
Funakoshi chega aos 30 anos de idade, a arte das mãos vazias tinha a
sua primeira demonstração pública em Okinawa, em 1906, já era
ensinada nas escolas como prática desportiva, consequência do
trabalho do Mestre Itosu. Por conseguinte, muitos japoneses
(considerados “estrangeiros” pelos Okinawanos) puderam ter alguma
noção dessa técnica até então oculta.
Foi,
devido ao relatório que Shintaro Ogawa, comissário do governo do
distrito de Kagoshima, dirigiu ao Ministério da Educação, que o
treino do Karate passou a ser oficialmente, autorizado nas escolas.
Alguns
anos mais tarde, o capitão da Marinha Imperial Japonesa, Rokuro
Yashiro assistia a uma demonstração de katas que o impressionou
muito, a ponto de dar aos seus homens ordem de treinar Karate
.
Em 1912, a primeira frota imperial, sob o comando do Almirante Dewa,
acostava na baía de Chojo-o o que permitiu a uma dúzia de oficiais selecionados estudarem a “Arte da Mão Vazia” por um curto
período de tempo. As primeiras noções desse Karate entraram no
Japão com o regresso desses oficiais.
A
brecha iria abrir-se ainda mais, graças a uma primeira demonstração
feita em Kyoto, por Funakoshi, em 1916. Segundo fontes de estudo,
todavia, Tsuyoshi Chitose teria dado uma demonstração ainda antes.
No dia 6 de Março de 1921, o príncipe herdeiro Hirohito, em viagem
para a Europa, faz uma escala em Okinawa e impressiona-se vivamente
com a demonstração de Karate feita diante dele. A partir dessa
época, marcada pelo renascimento do imperialismo no Japão e do
desenvolvimento militarista, os dirigentes japoneses passaram a ver
no Karate Jitsu um excelente meio, entre outros, de fortalecer essa
elite.
É
no ano seguinte, que Funakoshi regressa, de uma segunda viagem ao
Japão e desta vez para não mais deixar o país, prisioneiro do seu
próprio êxito.
Já
outros haviam também tentado mostrar a “Arte da Mão Vazia”, em
terras distantes, como Norimichi Yabe, em 1920, nos Estados Unidos.
Em Maio de 1922, Gichin Funakoshi, então presidente da Okinawa Shobu
Kai, chegava a Tóquio.
Em
Novembro, assinava o seu primeiro livro, “Ryukyu Kenpo Karate”, a
primeira publicação sobre o assunto, na qual explicava o espírito
da sua arte. As placas de impressão dessa obra foram destruídas
pelo terramoto de 1923, o que deu lugar a nova edição, revista, a
“Rentan Goshin Karate Jutsu”. Em 1935, surgiu a sua segunda
obra, desta vez, um verdadeiro manual técnico, o “Karate Do
Kyohan”.
A
partir de então, a popularidade da modalidade crescia, a ponto de
encobrir os seus próprios pioneiros. A escolha de Funakoshi pelos
seus pares, para ir ao Japão, recaiu, é preciso insistir no facto
de que queriam que o primeiro mestre a representar oficialmente
Okinawa fosse, tanto embaixador e diplomata, quanto técnico na Arte.
Gichin
Funakoshi era também mestre de poesia e caligrafia; ensinava
profissionalmente a ler e escrever o idioma Japonês, estando bem a
par dos costumes do País em relação às maneiras e ao
comportamento social.
Há
quem pretenda, como o mestre Soshin Nagamine, que Choki Motobu tenha
acompanhado Funakoshi a Tóquio por ocasião da histórica
demonstração. Na sua obra, “Okinawa Kenpo Karate Jutsu”, Motobu
diz que fora ele a convidar Funakoshi para tomar o lugar de instrutor
principal do Japão, visto não conhecer bem os costumes e a língua
Japoneses. Seja como for, o certo é que Motobu ensinara Karate em
Osaka, a partir de 1923.
O
encontro entre Funakoshi e Jigoro Kano foi decisivo para a propagação
do Karate. Kano convidara Funakoshi para fazer uma demonstração
reservada, no Kodokan. Funakoshi demonstrou o Kata Kanku Dai (então
chamado Kushanku) e o seu amigo Makoto Gima demonstrou o Naihanchi
Shodan. Em 1924, Jigoro Kano, acompanhado de Nagaoka, davam uma
demonstração de Judo em Okinawa. Assim, ambos os mestres, de Karate
e Judo, continuaram a sentir uma mútua estima , conta-se que, até
ao fim de sua vida (Kano morreu em 1938), Funakoshi inclinava-se
todas as manhãs, em direção ao Kodokan em memória de Jigoro
Kano.
Fez,
ainda, inúmeras demonstrações com Makoto Gima, tornou-se o seu
discípulo favorito.
Não
houve, entretanto, uma “ponte de ouro” Okinawa-Japão. O início
foi duro!
No
seu primeiro ano no Japão, Funakoshi teve que se contentar com o
dormitório dos alunos, em Suidobashi. Durante o dia, ocupava-se dos
afazeres rotineiros e, à noite, ensinava os primeiros alunos. O seu
primeiro discípulo japonês foi Tanaka Kuniki. O ensino era
gratuito; Funakoshi ganhava a vida, dificilmente, graças aos seus
conhecimentos de caligrafia.
O estilo Shotokan (criado por Funakoshi), baixo e poderoso, é hoje, muito popular em todo o Mundo.
Onze anos após a morte de Gichin Funakoshi (1868-1957), foi erigido um memorial, no Templo de
Enkaku-ji em Kamakura no ano de 1968.
Em
cima, o epitáfio do memorial a Gichin Funakoshi. Foi escrito por
Asahina Sogen, sacerdote chefe do templo Enkaku-ji, e nele se lê:
“Karate ni sente nashi” (Não há primeiro ataque em karate)
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